80 anos da ONU: a organização perdeu a relevância?
Bandeira das Nações Unidas (ONU)
Getty Images via BBC
A Organização das Nações Unidas (ONU) inicia nesta terça-feira (23/09) os debates de sua Assembleia Geral anual marcando seu 80º aniversário em meio a questionamentos sobre sua relevância e real influência no tabuleiro geopolítico global.
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Criada em 1945, após a Segunda Guerra Mundial, a organização nasceu da necessidade de oferecer um espaço permanente de diálogo entre países para que fossem evitados novos conflitos. Seu propósito original era claro: dar voz a todos os Estados soberanos e criar mecanismos coletivos de manutenção da paz.
Ao longo de oito décadas, a instituição deixou marcas profundas — da descolonização de África e Ásia à condenação do apartheid, passando pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e por missões de paz que ajudaram a encerrar conflitos e reconstruir nações.
Mas, diante das guerras atuais, das crises humanitárias e das rivalidades entre potências, cresce a dúvida: a ONU ainda é capaz de cumprir esse papel central ou se tornou uma organização mais simbólica do que efetiva?
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que um mundo sem a ONU seria mais instável — não apenas no campo dos conflitos armados, mas também em áreas como alimentação, saúde e educação. Ao mesmo tempo, há consenso de que a organização precisa de reformas para se adaptar aos desafios atuais e de que sua atuação é, por definição, limitada pela soberania dos Estados que a compõem.
Nesta matéria, você vai ver:
O que explica a pouca capacidade da ONU de resolver os conflitos atuais?
‘A ONU não é um governo mundial’: o limite imposto pela soberania dos Estados
O papel da ONU no dia a dia das pessoas
Crise financeira e cortes internacionais
O que explica a pouca capacidade da ONU de resolver os conflitos atuais?
O que será tratado na Assembleia Geral da ONU
A atuação da ONU em crises internacionais tem sido alvo de críticas, sobretudo diante da escalada de conflitos recentes em diferentes regiões do mundo — como a guerra na Ucrânia, a ofensiva de Israel em Gaza e as tensões em países africanos, a exemplo do Sudão e da Somália. Persistem ainda ameaças como o ressurgimento do Estado Islâmico e o fortalecimento de movimentos de extrema direita, que complicam o cenário internacional e ampliam a pressão sobre a organização.
Segundo Paulo Velasco, professor de política internacional da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), a história da ONU ao longo de seus 80 anos mostra que essas dificuldades não são novas.
Durante 40 anos de Guerra Fria, por exemplo, a organização teve pouca relevância em questões centrais devido à bipolaridade entre Estados Unidos e União Soviética, permanecendo muitas vezes à margem de conflitos como a Guerra do Vietnã. Com o fim da Guerra Fria, acreditava-se que a ONU poderia desempenhar um papel mais protagonista, e os anos 1990 foram marcados por fóruns internacionais importantes para coordenar ações conjuntas nas áreas de meio ambiente — como a Rio-92 — e direitos humanos — como a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos em Viena (1993).
Mas hoje a capacidade da ONU em resolver conflitos é bastante limitada, e essa limitação, na avaliação de Rafaela Sanches, doutora em Relações Internacionais pela PUC-Minas e professora do UNIBH (Centro Universitário de Belo Horizonte), está diretamente ligada à sua própria estrutura, especialmente ao Conselho de Segurança.
Hoje, cinco membros permanentes — Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido — possuem poder de veto, o que dificulta a aprovação de resoluções pelo Conselho.
“Esse mecanismo permite que qualquer resolução que conflite com os interesses nacionais desses países seja bloqueada. Na questão da Ucrânia, por exemplo, a Rússia veta resoluções que a impactariam diretamente. No conflito entre Israel e Palestina, os Estados Unidos já bloquearam mais de 30 vezes discussões sobre proteção de civis em Gaza e outras violações.”
Matias Spektor, professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas), acrescenta que essa limitação não é nova.
“As Nações Unidas são tão relevantes hoje quanto no passado, mas não podemos esperar que façam o que juridicamente não têm como fazer: domar as grandes potências que as controlam”, afirma.
Ele avalia que há dois tipos de crises, e que o poder de influência depende da geografia.
“Nos conflitos em que não há envolvimento direto de potências do Conselho de Segurança, a ONU costuma desempenhar papel central de mediação, sobretudo em países da África, da Ásia e, no passado, na América Latina. Já quando o embate envolve um desses cinco membros permanentes, a ONU ‘fica de mãos amarradas’.”
Como exemplo, Spektor cita a Guerra das Malvinas, na década de 1980, que envolvia o Reino Unido: por se tratar de um conflito diretamente ligado a um membro permanente do Conselho de Segurança, a ONU não conseguiu mediar a disputa nem impor sanções efetivas. Ele compara essa situação às crises atuais em Gaza e na Ucrânia.
Ainda assim, o professor aponta que o sistema da ONU garante transparência e cria o arcabouço jurídico que possibilita, por exemplo, a abertura de processos contra indivíduos por crimes de guerra ou genocídio, além de fornecer os dados mais confiáveis sobre o que se passa em campo.
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O Conselho de Segurança da ONU durante a votação de uma resolução de cessar-fogo sobre a situação no Oriente Médio, em Nova York, em 18 de setembro.
Getty Images via BBC
‘A ONU não é um governo mundial’: o limite imposto pela soberania dos Estados
Especialistas em relações internacionais apontam que a ONU é frequentemente vista — às vezes de forma equivocada — como um “super-Estado” capaz de intervir em qualquer crise global.
Essa expectativa esbarra, no entanto, em um princípio fundamental da própria organização: a soberania dos Estados. Segundo o analista da Uerj, Paulo Velasco, esse princípio está no cerne da Carta da ONU, que determina que nenhum país deve ser alvo de intervenção externa sem consentimento.
“A organização foi criada como um espaço composto por Estados soberanos, que deveriam agir de forma coordenada em temas de interesse compartilhado. Quando não há esse interesse comum e a posição soberana é divergente, é difícil mobilizar a ONU para uma solução conjunta, especialmente no Conselho de Segurança, onde as decisões têm efeito obrigatório para os membros”, explica Velasco.
Velasco ressalta que, desde sua criação, a ONU não foi pensada para constranger a soberania estatal, mas para conciliá-la com objetivos compartilhados.
“Intervenções humanitárias e a doutrina da ‘responsabilidade de proteger’ representam exceções, aplicáveis em crises como a da Líbia em 2011 [quando a ONU autorizou ações militares para proteger civis durante a revolta contra o regime de Muammar Kadhafi], mas nunca em relação a grandes potências.”
Velasco opina que a ONU é, por vezes, mal-interpretada. “Ela não é um super-Estado, não é um governo mundial, não está acima da soberania. Essa necessidade de compatibilização com a soberania dos Estados explica boa parte da inércia que testemunhamos em conflitos atuais.”
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O papel da ONU no dia a dia das pessoas
Mesmo diante da percepção de paralisia do Conselho de Segurança e de inércia em alguns conflitos, a organização cumpre funções essenciais no cotidiano das pessoas, na avaliação do analista da Uerj, Paulo Velasco.
Ele observa que a ONU foi concebida para resolver guerras, mas também desempenha um papel fundamental na coordenação de esforços em áreas como desenvolvimento, combate à pobreza e mudanças climáticas.
“Antes de afirmar que a ONU não serve para nada, basta olharmos para coisas simples. Por exemplo: em qualquer supermercado do mundo, em uma lata de leite em pó, há a recomendação de que, até os seis meses de idade, deve-se privilegiar o aleitamento materno. Isso vem da ONU, aprovado a partir de resoluções da organização.”
“O sistema da ONU é vasto e vai muito além da Assembleia em Nova York, englobando agências como a Unesco (educação, ciência e cultura), a FAO (alimentação e agricultura) e o Unicef (infância e direitos das crianças).”
Segundo Velasco, mesmo nos temas de segurança e conflitos internacionais, é preciso compreender as limitações impostas pelos interesses das grandes potências. “A ONU sempre funcionou dentro dessas restrições, mas, ainda assim, oferece freios diplomáticos importantes e cria arcabouços que evitam a escalada desenfreada de conflitos”, explica.
Rafaela Sanches, doutora e professora de Relações Internacionais, reforça essa visão: a organização também atua como mediadora e coordenadora de esforços internacionais em questões cruciais para a população.
” Sem a ONU, as ações estatais seriam ainda mais limitadas, por questões financeiras, tecnológicas e de coordenação”, aponta.
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Crise financeira e cortes internacionais
Assembleia Geral marca 80 anos da ONU diante de crise de protagonismo
A ONU enfrenta uma pressão crescente devido à redução de contribuições de grandes doadores, que afeta diretamente sua capacidade de atuação. Em 2025, vários países europeus reduziram seus repasses.
A França, por exemplo, anunciou cortes de € 700 milhões (cerca de R$ 4,3 bilhões) em sua ajuda oficial ao desenvolvimento — recursos conhecidos como ODA, destinados a financiar projetos de combate à pobreza, saúde, educação e infraestrutura em países em desenvolvimento. O Reino Unido também diminuiu a ODA para 0,3% do PIB a partir de 2027, enquanto Alemanha, Países Baixos e Bélgica também reduziram suas contribuições.
Nos Estados Unidos, os cortes de recursos foram ainda mais drásticos. Nos primeiros meses de 2025, o presidente Donald Trump, que questiona publicamente a eficácia da ONU, retirou o país de órgãos como o Conselho de Direitos Humanos da ONU e da agência de assistência a refugiados palestinos (UNRWA), suspendeu centenas de milhões de dólares de financiamento a entidades multilaterais, incluindo o Fundo de População da ONU (UNFPA), e pausou a ajuda externa.
Segundo o analista da Uerj Paulo Velasco, essas medidas têm efeitos profundos. “Isso é um problema grande, porque os Estados Unidos não são um país qualquer. São fundamentais para o funcionamento dessas organizações. Cortes dessa magnitude impactam programas essenciais do PMA, do Unicef e do OCHA (órgão da ONU que coordena o envio de ajuda humanitária), resultando em redução de serviços, cortes de pessoal e atrasos em respostas humanitárias”, avalia.
Velasco contextualiza que a postura de Trump se insere em uma retórica mais ampla de questionamento do multilateralismo, comum a governos de direita e de ultradireita, que enxergam a ONU e outras instituições internacionais como ameaças à soberania nacional.
“Essa agenda antiglobalista entende, muitas vezes de maneira equivocada, que esses espaços são próximos a uma agenda de esquerda, por mobilizarem direitos de mulheres, povos indígenas e da comunidade LGBT+. O Trump é o expoente disso: retira os Estados Unidos do Conselho de Direitos Humanos, da OMS e do Acordo de Paris, enfraquecendo o multilateralismo”, explica Velasco.
O analista ressalta que, mesmo diante desses desafios, a ONU continua desempenhando funções essenciais. “O multilateralismo não vive seu melhor momento, mas a organização ainda oferece freios diplomáticos importantes, cria arcabouços para cooperação e garante alguma coordenação global. Sem isso, o mundo seria ainda mais instável”, conclui.
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By Marsescritor

MARSESCRITOR tem formação em Letras, é também escritor com 10 livros publicados.