O rei que morreu quando ia beijar seu sobrinho, em crime que abalou a Arábia Saudita há 50 anosO rei que morreu quando ia beijar seu sobrinho, em crime que abalou a Arábia Saudita há 50 anos
O rei que desafiou o Ocidente morreu cumprimentando seu sobrinho
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“Nunca me esquecerei daquele dia: absorvi toda aquela dor do meu pai.”
“Imagine: um ser humano, de pé ao lado do seu mentor, seu mestre, seu amigo e alguém atira, ali, tão perto”, declarou à BBC a doutora Mai Yamani.
Ela recordava o ocorrido no dia 25 de março de 1975.
Naquela data, o rei Faisal da Arábia Saudita (1906-1975) recebeu três disparos à queima-roupa, em rápida sucessão, enquanto cumprimentava e dava as boas-vindas ao seu sobrinho.
O pai de Mai Yamani, o xeque Ahmed Zaki Yamani (1930-2021), era um ministro leal ao monarca há 15 anos e estava ao seu lado durante o ocorrido.
O rei Faisal era o terceiro governante do reino do deserto e o terceiro filho do seu fundador. Ele foi transportado com urgência ao hospital, mas morreu pouco depois.
Mai Yamani tinha então 18 anos. E, a alguns quilômetros dali, ela esperava seu pai.
“Eu estava sentada no apartamento do meu pai, rodeada pelos seus livros”, relembra ela.
“Ele entrou com uma expressão muito estranha e dolorosa no rosto. Foi diretamente à sala de jantar, soltou um grito e só conseguiu dizer uma palavra: ‘Calamidade!'”
Aquele não era um comportamento normal do seu pai. O xeque tinha fama de ser muito tranquilo, de falar em voz muito baixa. Ele então contou a ela o que havia acontecido.
“Às 10 horas da manhã, uma delegação petrolífera do Kuwait iria se reunir com o rei Faisal no palácio”, ela conta, “e meu pai, que era ministro do Petróleo, foi fornecer ao rei as informações necessárias.”
“Esse príncipe, ironicamente com o mesmo nome [príncipe Faisal Ibu Musaed, 1944-1975], entrou com o ministro do Petróleo do Kuwait e o rei abriu os braços para abraçar seu sobrinho, que tirou uma pequena pistola do seu bolso e disparou.”
“Três disparos na cabeça.”
A vítima era filho do rei saudita Ibn Saud (c.1877-1953), aqui fotografado com o ex-presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt (1882-1945). Ibn Saud unificou e fundou a Arábia Saudita em 1932, após 30 anos de lutas
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Um dos guarda-costas do rei golpeou o príncipe com sua espada, ainda embainhada.
Os relatos foram de que o xeque Yamani ordenou aos guardas que não matassem o príncipe. Mas outras informações da época dizem que o agressor declarou à polícia que o xeque estava tão perto do rei que ele acreditou também tê-lo matado.
Mas não foi o que aconteceu. O rei Faisal ainda estava vivo e o xeque Yamani o acompanhou ao hospital. Ali, o rei morreu, apesar dos esforços dos médicos para salvá-lo.
“Depois disso, tudo ficou em silêncio”, recorda Mai Yamani. “As ruas de Riad estavam vazias.”
O rei do deserto
Faisal havia se tornado rei da Arábia Saudita em 1964.
O reino era um deserto do tamanho da Europa ocidental. E, como seu governante, ele se propôs a modernizar o país, um dos mais atrasados do Oriente Médio.
Faisal era um dos filhos mais velhos de Abdulaziz al-Saud (c.1877-1953). Ele havia lutado na campanha do pai para unir a Península Arábica, que levou à fundação do reino que leva seu nome, a Arábia Saudita, 30 anos antes.
Mais tarde, Faisal se tornou primeiro-ministro sobo comando de seu irmão mais velho, Saud (1902-1969), que se tornou rei com a morte do pai.
Ao assumir o trono, Faisal já era conhecido por ser um político astuto, piedoso, trabalhador e reformador.
Um homem acostumado a comercializar nas capitais de outros países pelo mundo. E um governante que queria usar a recém-descoberta riqueza em petróleo do país para levar à Arábia Saudita as vantagens de uma educação estatal moderna, serviços de saúde e um sistema judiciário.
Mas as reformas do rei Faisal nem sempre agradaram aos elementos mais conservadores da austera escola do Islã, à qual sua família era aliada.
O xeque Ahmed Zaki Yamani, ministro do Petróleo da Arábia Saudita, fotografado durante o embargo ao petróleo árabe, ocorrido em 1973
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Em meados dos anos 1960, o rei Faisal inaugurou a primeira emissora de televisão da Arábia Saudita. Na ocasião, houve um ataque armado contra o edifício, dirigido pelo irmão do homem que, mais tarde, o assassinaria.
Mas, na época, Faisal já havia feito e continuaria fazendo contribuições significativas, mesmo em campos até então intocados, como a educação das mulheres.
Em 1956, quando ainda era o príncipe herdeiro, o rei inaugurou a primeira escola estatal regular para meninas, sob o patrocínio da sua esposa Iffat (1916-2000).
“A rainha Iffat deu início à educação para meninas no Reino da Arábia Saudita e, para mim, é motivo de orgulho dizer que fui uma das nove primeiras alunas da sua escola, que se chamava Dar Al Hanan, a Escola da Ternura”, conta Mai Yamani.
“O rei Faisal convenceu o setor religioso de que, educando as mulheres, elas se tornariam melhores mães.”
Um reino poderoso
O pai de Mai Yamani começou a trabalhar para o rei Faisal em 1960. Era algo incomum, pois, embora fosse advogado e tivesse alto nível educacional, ele era plebeu e não fazia parte da família real saudita.
Mas o rei Faisal havia lido alguns artigos escritos por Yamani, que chamaram sua atenção.
“Meu pai abriu o primeiro escritório de advogados e logo começou a escrever artigos muito provocadores, pedindo democracia e boa governança”, relembra ela.
“Então, Faisal, que era o príncipe herdeiro e procurava um assessor jurídico, perguntou: ‘Quem é este homem?'”
Posteriormente, o rei Faisal nomearia o xeque Yamani, como ficou conhecido, seu ministro do Petróleo.
Juntos, o rei e o súdito elaboraram uma política que, pela primeira vez, forneceu ao reino o controle total do seu imenso patrimônio petrolífero e o transformou em uma potência respeitada no mundo árabe e no cenário internacional.
A crise energética da década de 1970, causada pela escassez e pelos altos preços do petróleo, impulsionou a primeira mudança rumo a tecnologias para economizar energia
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Em 1973, depois da guerra entre Israel e seus vizinhos árabes, a Arábia Saudita (na época, o maior produtor de petróleo do mundo) liderou a campanha para usar o petróleo, pela primeira vez, como arma política.
O fornecimento de petróleo para os países que apoiavam Israel foi reduzido, fazendo com que os preços mundiais do petróleo disparassem. E o xeque Yamani foi encarregado de transmitir a mensagem.
“O que queremos é a retirada completa das forças israelenses dos territórios árabes ocupados e, então, vocês terão petróleo ao mesmo nível de setembro de 1973”, explicou ele na época à BBC.
O enorme aumento dos preços do petróleo trouxe uma mudança no equilíbrio de poder mundial entre os países em desenvolvimento, como eram chamados na época, os produtores e as nações industrializadas.
Esta mudança de equilíbrio do poder foi reconhecida em 1974 (o ano anterior à sua morte), quando o rei Faisal foi declarado “Homem do Ano” pela revista Time.
Depois do assassinato
O príncipe Faisal Ibu Musaed foi capturado imediatamente após o ataque ao tio. Ele foi interrogado e os médicos psiquiatras acreditaram que ele sofria de um “desequilíbrio mental”.
Foi informado que o príncipe estava tranquilo, antes e depois do assassinato.
Inúmeros chefes de Estado assistiram ao funeral do rei Faisal, da Arábia Saudita. Ao lado do seu sucessor, o rei Khalid (1913-1982), o líder da OLP, Yasser Arafat (1929-2004), e o presidente do Egito, Anwar al-Sadat (1918-1981)
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Após o assassinato, a capital da Arábia Saudita, Riad, permaneceu completamente fechada durante três dias de luto.
O rei Khalid (1913-1982), irmão do rei assassinado, ocupou seu lugar mediante acordo da família real saudita. E o príncipe Faisal Ibu Musaed foi posteriormente declarado culpado pelo assassinato do rei.
Em junho de 1975, ele foi decapitado em praça pública em Riad, segundo o método tradicional de execução da Arábia Saudita, baseado na lei islâmica.
“Não sabemos qual foi o verdadeiro motivo do assassinato do rei, além do fato de que o assassino era um homem perturbado.” O príncipe Musaed foi declarado oficialmente louco, segundo um “acordo emitido pelo gabinete real”.
Ele levou para o túmulo os motivos que o levaram a matar seu tio, mas houve especulações de que ele tentou vingar a morte do seu irmão mais velho, Khalid, em um enfrentamento com as forças de segurança em 1966.
Surgiram também teorias da conspiração, mas uma investigação posterior declarou que o príncipe Faisal Ibu Musaed agiu sozinho.
O xeque Yamani se manteve no posto de ministro do Petróleo da Arábia Saudita por mais 11 anos, até 1986.
Mai Yamani cursou a universidade nos Estados Unidos e se tornou a primeira mulher saudita a obter um doutorado na Universidade de Oxford, no Reino Unido.
Ela escreveu diversos livros sobre a identidade árabe e também atuou como consultora de bancos, como o Goldman Sachs, e companhias petrolíferas, como a Shell.

By Marsescritor

MARSESCRITOR tem formação em Letras, é também escritor com 10 livros publicados.